4.2.14

LUÍS CARLOS PATRAQUIM


TRÊS VARIAÇÕES SOBRE O ESCURO ANTERIOR

o olho intrusivo
pouco
o que vês na paisagem
se houvesse

e
dizes a palavra muda

há uma savana anjo
que te redime

ela
pietá
a invisível árvore

e tu
filho de nada
no seu colo

*

Alta noite
depois do escuro anterior
eu vi a máquina

a máquina prótese
epigramática

e meu canto tinha a tensão de um arco
e cada grito era uma seta

*

Coração neuronal sanguínea pulsante fonte
de que mar beber-te a inteligência
que a voz pergunta

um chuço passou
e a cabeça larvar corre adiante
oscilando sob a Lua

As adagas flanqueiam a Carne
orgiásticas
subindo até à transcendência
do Gesto

o que dança
e explode da lava e a isso chamamos Mãe
e rasgamo-la!

Ei-lo! O cavaleiro mongol degolando
a última estrela

Um pescoço de nuvem onde
pasmam as gazelas cúbicas
sossegadas



(«unpublished poems for "Anjos Urbanos" exhibition by José Cabral», in Urban Angels, P4Photography, 2009)

2.2.14

JORGE DE SENA


ELOGIO DA VIDA MONÁSTICA

Outrora, uma pessoa retirava-se do mundo,
amortalhava-se em vida, fazia-se monge,
ou porque a vida lhe dera tudo e a agonia sobrevinha,
ou porque desistia de lutar com ela pelo que não vinha nunca
(nem mesmo sob a forma de agonia que facilitasse as coisas).
Depois, porque o espírito precisa de ocupar-se,
a pessoa tratava de salvar a própria alma,
de mortificar o corpo, e preparava-se para a morte
(um acidente para que só pelo acaso feliz de ter nascido,
uma pessoa, naquele tempo sem recurso algum,
estava, por estar viva, sempre preparada).
Era uma aposentadoria honrosa, olhada com respeito,
e que não podia deixar de encher a solidão
como gente e amor não tinham preenchido a vida.
Era um estar só, rodeado de calor humano,
sem os inconvenientes e a incomodidade
que o convívio humano traz consigo,
desde os sentimentos a mais aos sentidos a menos,
ou ao facto lamentável de quem amamos não cheirar
como quereríamos: a um misto de rosas e de sexo,
com alguma imaginação de como o amor cheira.

Hoje, não há mais mundo
de que uma pessoa possa retirar-se.
O mundo se retirou de nós. E a solidão
é como um convento gigantesco em que,
na rua, nos transportes colectivos, na cama,
olhamos a vizinhança com a mesma convicção
com que os carmelitas descalços ao cruzarem-se no claustro
mutuamente se saudavam dizendo
que era preciso morrer.
Na dor, na alegria, no prazer, em tudo,
somos monges laicos cuja morte sobrevém
de uma qualquer maneira estúpida e sem graça.
E o nosso olhar de espanto não é o de termos sido
colhidos de surpresa antes de estar salva a alma,
mas o de ela estar salva, desde que o mundo
se retirou de nós. É o olhar de espanto do funcionário público
que descobre, ao contarem-lhe o tempo de aposentadoria,
que nunca figurara na folha de pagamento,
nem no quadro dos funcionários efectivos,
ou mesmo sequer nas listas do comissariado
do desemprego. Não tem direito sequer
à agonia que todavia sente como antigamente
era sentida a que justificava tudo:
o prazer de decidir entre duas coisas:
o ir ou o ficar, o estar ou o partir,
O ter-se uma alma que jogar e perder.

26/9/1965 

(de 40 Anos de Servidão, edições 70, 1989)