14.2.04

EMANUEL FÉLIX

Nasceu em Angra do Heroísmo, em 1936. Também ensaísta, autor de contos e crónicas, crítico literário e de artes plásticas.
Chegou hoje a notícia de que morreu.

"Melhor o vejo operário da palavra como um mister sagrado - seu compromisso sócio-intelectual, apresentando serenamente a voz preclara da Verdade na sua função libertadora. Melhor o vejo ainda peregrino silencioso da Poesia, percorrendo os espaços onde se encontram as palavras disponíveis e componentes do edifício do poema. Nada detém Emanuel Félix nestas viagens onde se encontram os deuses em seu descanso, os homens com o coração à tona da água, os bichos na pose delirante dos seus festins. E tanto viaja, como os pássaros, até aos reinos da primavera e do sorriso (sua Melibeia oriunda da liberdade e vestida de mil silêncios), como peregrina - volátil profeta da manhã - pelo país das magnólias e das flores de lotus, a quem os tempos emprestaram a filosofia das coisas simples." (Álamo de Oliveira - excerto do texto introdutório do livro A Viagem Possível)

PEDRA-POEMA PARA HENRY MOORE

Um homem pode amar uma pedra
uma pedra amada por um homem não é uma pedra
mas uma pedra amada por um homem

O amor não pode modificar uma pedra
uma pedra é um objecto duro e inanimado
uma pedra é uma pedra e pronto

Um homem pode amar o espaço sagrado que vai de um homem a uma pedra
uma pedra onde comece qualquer coisa ou acabe
onde pouse a cabeça por uma noite
ou sobre a qual edifique uma escada para o alto

Uma pedra é uma pedra
(não pode o amor modificá-la nem o ódio)

Mas se a um homem lhe der para amar uma pedra
não seja uma pedra e mais nada
mas uma pedra amada por um homem

ame o homem a pedra
e pronto

(de O Vendedor de Bichos, 1965)

TRISTES NAVIOS QUE PASSAM

Tristes navios que passam
na hora da nossa vida
na hora da nossa morte

escuros vasos de guerra
cargueiros tanques paquetes
brancos navios de vela

levam óleo levam ódio
luxo lixo das cidades
levam gente gente gente

deixam ficar nostalgia

tristes navios que passam
na hora da nossa morte
na hora da nossa vida

DOIS POEMAS CHINESES

1. Canção do trigo à maneira de Han


O trigo está verde:
Preciso é que amadureça.

E quem serão os ceifeiros?
- As mães os seus meninos...

(Os homens estão para o sul
A combater os bárbaros).

2. Por um anónimo da Dinastia T'sin(*)

Os mandarins compram cavalos brancos.
Os grandes senhores têm palácios de oiro.

Mas, cuidado:
Nem uma palavra, amigo.
__________________
(*)Período em que foram queimados os livros e enterrados vivos todos os poetas (N. do A.)

(de 5 Poemas de Amor)

DISCURSO (MUITO BREVE)
SOBRE A CRIAÇÃO ARTÍSTICA


Para o Jean-Claude Bertrand

Com que amor violentamos a folha deserta
cujas margens tateiam a fronteira do sangue
cujas marcas viajam a superfície múltipla
das dunas mão aberta
afagamos talvez a face o pleno espaço
na outra logo o fogo
o lápis a memória
o gesto em vez do peso
a viagem
sem bússola do corpo

com que violência amamos o terreno
demarcado do espanto
sobre o húmus a força o quente espaço
a forma
a breve fala

Paris, 1979

(poemas retirados do volume que recolhe a obra poética do A. até 1981, A Viagem Possível, editada pela Secretaria Regional [dos Açores] da Educação e Cultura, em 1984 - há uma edição, mais recente e aumentada, pela editorial Vega)

3.
Porque digo pareces
uma espiga de trigo
eis o cheiro da terra deste Junho
quando é tarde demais para semear
mas cedo ainda
cedo
para o gesto infinito
de repartir o pão

(da sequência Seis recados pessoais para Margarida Weizen, incluído em Habitação das Chuvas, edição do A., Angra do Heroísmo, 1997)
Hoje as convenções consumistas festejam um tal São Valentim, diferente do que consta do martiriológio romano. Pacheco Pereira diz até que este "é o dia do amor liofilizado".

A Igreja Católica continua a considerar Valentim como um exemplo digno de ser seguido, mas neste dia dá maior destaque aos santos Cirilo e Metódio, dois irmãos que viveram no século IX e que, oriundos da cidade de Salónica (agora Tessalónica) na região dos Balcãs, se tornaram nos evangelizadores da toda a zona eslava.
João Paulo II declarou-os co-padroeiros da Europa no último dia de 1980, manifestando assim, que a expansão do cristianismo neste continente foi (está a ser) vivida em todo o seu território e que as diferenças culturais não são entrave a uma unidade de facto numa fé comum, assim nos saibamos conhecer uns aos outros. Como o Papa gosta de dizer: "uma Europa que respira com dois pulmões".

(Há uma carta encíclica, que vale a pena ler, sobre estes santos: Slavorum Apostoli, de 1985 - não está disponível on-line em potuguês, mas existe uma edição da editora do Apostolado da Oração, de Braga)

13.2.04

[SONETOS À SEXTA-FEIRA]

ANTÓNIO BARBOSA BACELAR


Havia Felício dado fim a seu canto, e não a suas lágrimas, e querendo tomar para alívio delas hua hora de descanso (se acaso em um Triste para descanso há hora), se ia recostando sobre o áspero leito de um Penedo, a tempo que lhe feriu as orelhas uma doce voz, que tocando brandamente hua viola, dizia desta sorte:
Áspera serrania que elevada
ao mais sublime cume rutilante
te obedecem os Orbes fulminante,
não te viram os raios fulminada;

De ti mesma em ti mesma remontada,
parece que presumes, arrogante,
escalar as esferas de diamante,
atropelar a Máquina Estrelada.

Eterna vive, dando Leis aos ventos,
ao mar espanto, assombro da grandeza,
do tempo injúria, da firmeza Templo;

Eterna vive império aos Elementos,
pois és de Nise exemplo na dureza,
pois és de Lauro na firmeza exemplo.

(excerto de Desafio Venturoso - edição de Ana Hatherly)


FRANCISCO RODRIGUES LOBO

Se coubesse em meus versos e em meu canto
A tristeza sem fim que o peito encerra,
Moveria aos penedos desta serra
A nova piedade e novo espanto.

Se puderam meus olhos chorar tanto
Quanto se deve à causa que os desterra,
Cobriram já em lágrimas a terra,
Escurecendo o seu tão verde manto.

Mas o que tem amor dentro encerrado
Na alma, que à língua e olhos se defende,
Não pode ser com lágrimas contado:

Ah! quem sabe sentir quanto compreende
Que o mal que está oculto em meu cuidado
Não se vê, não se mostra, não se entende.

(edição de Luís Miguel Nava)


ANDRÉ FALCÃO DE RESENDE

A uma dama que lia por o livro de Francisco de Sá de Miranda.

Quem não louvará muito a toda a hora
O Sá Miranda, nunca assaz louvado,
D'engenho, estudo, estilo alto e apurado,
E sobre tudo tão ditoso agora

Que é do puro alabastro assim, Senhora,
De vossas delicadas mãos tocado,
Dessa voz doce ora pronunciado,
No seio d'alva neve posto outr'ora?

Pirâmides, sepulcros sumptuosos,
Edifícios que m fim o tempo gasta,
Tanto sem fim não fazem sua memória

Quanto a luz desses olhos tão formosos,
Que graça e vida dar a tudo basta,
E a mim dão vida e morte, pena e glória.

(fixação do texto de Isabel Almeida)


ABADE DE JAZENTE (Paulino Cabral de Vasconcelos)

Já que esta noite o sono se demora
A entrar na solidão deste aposento,
Vamos por esse mundo, ó pensamento,
Antes, que o dia traga a roxa Aurora.

Governamo-lo em seco: e dele fora
Como quem vê da praia o mar violento,
Demos a quem navega arbítrios cento,
Que pode ser, que algum lhe sirva agora.

Dizem por 'i; que tudo o Inglês abrasa
Em tantas Naus, como até'qui costuma;
Mas eu lhas fundirei dentro de Casa.

Vem-me qualquer Rapaz, que de uma em uma
Vá lançar no paiol uma só brasa;
Que eu farei que todas lhas consuma

(fixação do texto de Miguel Tamen)


ELPINO NONACRIENSE (António Dinis da Cruz e Silva)

Fuliginosos Ciclopes suavam
Um corisco batendo retorcido,
E os golpes do martelo endurecido
Pela côncava gruta ressoavam:

Do rubro ferro chispas mil saltavam,
Entre as quais os Ministros de Cupido
Noutra bigorna com menor ruído
Um virotão talhante trabalhavam.

Tanto que a cruel arma esteve pronta,
Amor, para prová-la, destramente
No peito me cravou a aguda ponta:

Da ferida o traidor ficou contente;
Pois desde que o terrível arco aponta,
Não tem ferro vibrado mais ardente.

(fixação do texto de Maria Luísa Malaquias Urbano)

12.2.04

FIAMA HASSE PAIS BRANDÃO

EPÍSTOLA PARA OS MEUS MEDOS


Sois: os sons roucos, a espera vã, uma perdida imagem.
O coração suspende o seu hálito e os lábios tremem
sinto-vos, vindes ao rés da terra, como ventos baixos,
poisais no peitoril. Sois muito antigos e jovens,
da infância em que por vós chorava encostada a um rosto.
Que saudade eu tenho, ó escuridão no poço,
ó rastejar de víboras nos caniços, ó vespa
que, como eu, degustaste o figo úbere.
Depois, mundo maior foi a presença e a ausência,
a alegria e as dores de outros que não eu.
E um dia, no alto da catedral de Gaudí,
chorei de horror da Queda, como os caídos anjos.

(de Epístolas e Memorandos, Relógio d'Água, 1996)
GONÇALO M. TAVARES

A vida humana é extraordinariamente feliz e infeliz. Os homens são extraordinariamente bons e maus. Não sou pessimista: não vejo o homem como uma bola orgânica má, apenas. Mas julgo que é um optimismo pouco lúcido, e até perigoso, considerar que os humanos são uma espécie de bonzinhos intermináveis. Foi o facto de os homens não estarem atentos à maldade dos outros e de si próprios que fez com que ocorressem uma série de tragédias no século em que a cultura atingiu o seu auge. Um carrasco pode citar Heraclito ou Shakespeare enquanto tortura.
É importante que a literatura, a poesia e as artes nunca esqueçam a maldade potencial de todos os homens. A função de desencantar, em que o Um Homem: Klaus Klump se insere, é uma espécie de agulha que incomoda constantemente, como quem diz: "Não te esqueças da tua maldade, ela anda por aí, algures, não te esqueças dela, localiza-a bem para a controlares, para evitares que ela venha à superfície." Temos de estar atentos: à maldade dos outros e também à nossa. Não é ser niilista nem um pessimista entediado com tudo, é apenas ligar a lucidez como se liga o botão da electricidade.

(de uma entrevista concedida a Maria João Cantinho, para a revista Os meus livros, número 18 - Janeiro de 2004)

11.2.04

ALEXANDRE O'NEILL

AS VOLTAS DA POESIA


Borborigmo a expensas da dobrada.
Para uns, é a alma alanceada;
para outros, quilo tão ronceiro
que lhes dá resmoneio o dia inteiro,
a conversa visceral fiada
que os versos são, primeiro.

Em qualquer dos casos, venham mas é versos,
bem tirados, acabados, tersos,
que a dobrada, essa, se por lá traquina,
é para coisa que se veja, chula ou fina.

(de Feira Cabisbaixa, 1965)
Na sua secção ISTO ANDA TUDO LIGADO, em umblogsobrekleist refere-se que:

«3 - Na sessão "Livros em Volta", o poeta Manuel António Pina virou uma garrafa de água ao contrário.»

Ora, o autor do blog deve ter chegado atrasado, porque senão teria reparado que, logo no início, o poeta Manuel Gusmão virou o seu copo de modo a ficar de boca para cima e bebeu directamente da garrafa.

E além disso Manuel António Pina explicou que "a poesia é uma sucessão de portas de saída que dão sempre para um interior."

10.2.04

«amar-te este minuto é ser amado
no papel e na tinta e no que escrevo
–no que oiço me vingo, e no que vejo.

Te crio no poema, e mais te creio
no que palavras dizem devagar,
(...)»

Pedro Tamen, Agora, Estar



AGORA, ESTAR, AINDA


Escrever é secreto demais
para não ser acto de amor.

É as letras a estarem juntas por
sabermos que é assim que as queremos. E

amamos e nos deixamos amar
pelas sílabas dum rosto que é outra
coisa, não papel ou tinta ou mão que escreve.

Será olhos e nariz e boca e
beijos e respiração e olhares,
ditos devagar depois de terem sido

9.2.04

ANNA ENQUIST

MENTIRAS EM TEMPO DE GROSELHAS


Que construção é mais sólida, se aguentou
mais tempo. E quantos mais aí moram, menos se
a consegue abandonar. Para onde. Anseia-se
por uma casa de Verão sem um fogão e sem
história. Estou aqui porque estou aqui.

Esta noite estive acordada, fazia vento, chuvas
fustigavam o castanheiro, enquanto já vinha o dia,
a noite não tinha trazido paz. Eu sabia
como eram as coisas, fui dormir e acordei
numa manhã de silêncio, lívida de tristeza.

Não se pode continuar com lamúrias. As ameixas
baqueiam podres das árvores, no frio
quintal as cores envelhecem velozes. Experi-
mentar tudo sem anestesia, pôr a postos as panelas e
o açucar, gerir os arquivos, guardar os cacos.

(tradução de Catherine Barel in Uma Migalha na Saia do Universo, Antologia da Poesia Neerlandesa do Século Vinte, selecção e introdução de Gerrit Komrij, Assírio & Alvim, 1997 - Documenta poetica)
Ah, humanidade!

Li hoje um dos contos mais perturbantes que já me passaram pelas mãos: Bartleby, de Herman Melville (Assírio & Alvim, 1988). Não tem cenas chocantes nem referências macabras. É uma história simples, passada num escritório de um escrivão, em Nova Iorque.
O tradutor, Gil de Carvalho, em nota final, diz que ele é «um dos escritos "proféticos" da passagem, no século XIX, à modernidade».




Mas ele não respondeu nem uma palavra. Como a derradeira coluna de um templo arruinado, permaneceu de pé calado e sozinho no meio da sala deserta.
JOSEPH CONRAD

- É o calor - disse Jukes - Está um tempo desgraçado. Capaz de fazer um santo praguejar. Mesmo aqui em cima sinto-me exactamente como se tivesse um cobertor de lã em torno da cabeça.
O capitão MacWhirr ergueu os olhos.
- Quer dizer, senhor Jukes, que já teve alguma vez um cobertor de lã em torno da cabeça? Eu desejaria que o senhor não falasse tão levianamente. Que espécie de santo seria esse que praguejasse? Não mais santo que o senhor, acho eu. E o que é que um cobertor tem a ver com isso... ou o tempo também... O calor não me faz praguejar... ou faz? É puro mau génio, é o que é. E que vantagem há em falar dessa maneira?
Assim protestava o capitão MacWirr contra o uso de metáforas e no fim electrizou Jukes com um desdenhoso rosnido, seguido de palavras de cólera e de ressentimento:
- Raios o partam! Eu ponho-o fora do navio se ele não se emenda.
E Jukes, incorrigível, pensou: «Valha-me Deus! Alguém conseguiu voltar o velho do avesso! Diabos me levem se ele não está irritado. Claro que é o tempo; que outra coisa havia de ser? Capaz de fazer perder a calma a um anjo... quanto mais a um santo.»

(excerto de O Tufão, tradução de Daniel Gonçalves, Difel, 1989)

8.2.04

CLAIRE LUNAR

:: claro-escuro #1 ::

os lugares vazios da terra
os interiores das casas
onde as sombras se habitam de vida
onde o silêncio se banha de luz.

(poema raptado daqui; e foi também raptado para aqui)
No fim de semana passado estive no Porto. Fui à antiga Cadeia da Relação, que agora é a sede do Centro Português de Fotografia. Foi a primeira vez que lá fui e foi uma desilusão. Um espaço tão magnífico para um conteúdo tão mal aproveitado. Valeu sobretudo pela cela onde esteve preso Camilo: uma vista de luxo sobre a cidade.

Fui também a Serralves: exposições interessantes, mas nada de realmente relevante, a não ser o facto curioso de junto à cadeira de todos (mas de todos mesmo!) os vigilantes estar um livro da respectiva leitura pessoal. Em Lisboa não vejo nada disso.
(será que o Alexandre poderá pontuar esta leitura pública?)